Filhos separados de pais com hanseníase são tema de audiência pública na Alesp

Por quatro décadas, política sanitária do Brasil isolou pacientes com hanseníase em hospitais-colônia; praxe era separar filhos dos pais acometidos com a doença

A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo sediou, na tarde desta quarta-feira (12), a Audiência Pública pela Garantia de Diretos dos Filhos e Filhas de pais separados por Hanseníase. O evento foi realizado no Plenário Tiradentes e requerido pelo mandato da deputada Leci Brandão, do PC do B, em iniciativa liderada pelo Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).

Reparação e “Justiça de transição”

“Pautas de reparação são fundamentais. Estamos falando de pessoas que foram largadas, obrigadas a largarem seus lares e suas convivências familiares”, afirmou Ediane Maria (PSol), durante a introdução da audiência.

A parlamentar relembrou, ainda, as dimensões socioeconômicas do processo histórico da hanseníase no Brasil. “Quando fazemos o recorte de raça e classe social, percebemos que a hanseníase afetou mais as pessoas pretas, por toda a questão de vulnerabilidade”, destacou Ediane.

Custodio reiterou o recorte socioeconômico destacado por Ediane Maria e detalhou o que representa a luta dos filhos apartados de pais pela hanseníase.

“No conceito da Justiça de transição, os estados com fragilidade democrática precisam avançar em termos de reparação, mas não é só financeira, trata-se de um conjunto de reparações”, afirma Artur Custodio, coordenador nacional do Morhan e que também integrou a Mesa da audiência. “Se houve crime de Estado contra quem estava nas colônias, e isso já está reconhecido, houve também contra os filhos de quem lá esteve”, completou.

Segregação e internação compulsória

Registros históricos indicam que, no Brasil, pessoas vivendo com hanseníase já eram segregadas do convívio social desde o século XVIII. A partir da década de 1920, com a instalação dos chamados “hospitais-colônia”, conhecidos vulgarmente como “leprosários”, a política sanitária passou a ser ainda mais agressiva.

Intensificada a partir do governo de Getúlio Vargas e sob a gestão do ministro da saúde Gustavo Capanema, o combate à hanseníase no Brasil consistiu, por quatro décadas, na internação compulsória dos pacientes – separando, no processo, pais e filhos.

“O combate à hanseníase assumiu, desde o início, caráter essencialmente discriminatório”, disse Leci Brandão. “Sob o pretexto de evitar o contágio de outras pessoas, o isolamento compulsório foi adotado sistematicamente, mesmo existindo, à época, indicações científicas que não recomendavam o isolamento”, completa a parlamentar.

As colônias nas quais os diagnosticados com hanseníase permaneciam isolados reforçavam os estereótipos associados à doença. Uma vez tratada, a hanseníase deixa de ser transmissível e, para a maioria dos casos, tem cura. O tratamento pela segregação persistiu mesmo após as pesquisas científicas que comprovaram a cura e outros meios de tratar a doença.

Briga na Justiça

Os termos “lepra” e derivados foram oficialmente banidos dos autos da administração pública por meio da Lei 9.010, de 1995.

A política de segregação levava crianças e adolescentes com pais diagnosticados com hanseníase a serem apartados de suas famílias de modo compulsório. O mesmo era feito com bebês nascidos nas dependências dos hospitais-colônia.

Após a extinção definitiva dessas unidades, em 1986, esses filhos apartados iniciaram um extenso processo de judicialização da questão, que dura até hoje.

Os filhos separados de seus pais de modo compulsório exigem indenização e os entendimentos na Justiça são divergentes. Em 2020, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que os prazos para processos do gênero prescrevem em 5 anos, nos termos do artigo 1º do Decreto 20.910/1932.

Projetos e leis em São Paulo

São Paulo foi a unidade federativa com o maior número de hospitais-colônia. O Estado chegou a contar com 54 aparelhos em operação no período em que a política de segregação esteve em vigor.

Na Alesp, o PL 1.214/19, de autoria de Leci Brandão, buscou instituir uma indenização de R$ 50 mil às pessoas separadas de suas famílias em razão do acometimento por hanseníase. Um outro projeto da deputada, o PL 1.287/19, prevê posse vitalícia do imóvel ocupado pelos pacientes nas antigas colônias. Ambas as propostas, afirma Brandão, são reivindicações do Morhan.

Há outras proposições, já convertidas em lei, que representaram avanços e reparações para a comunidade portadora da doença. A Lei 9.165/1995, do ex-deputado Daniel Marins, dispõe a respeito da concessão de pensões às pessoas com hanseníase. Vale dizer que a norma foi instituída no Estado de São Paulo bem antes de uma similar de âmbito nacional, a Lei Federal 11.520, de 2007.

Por sua vez, a Lei 9.880/1997, de Caldini Crespo, institui o Dia Estadual de Combate à Hanseníase, celebrado no último domingo do mês de janeiro.